O professor de Literatura do Colégio Sólido, Márcio Adriano Moraes, assina esta resenha literária do livro "Crepúsculo de arame", escrita pelo norte-mineiro Wagner Rocha. A obra é uma indicação de leitura para as provas do 1º Vestibular 2016 do IFNMG, que acontecem no próximo dia 10 de janeiro.
ROCHA, Antônio Wagner Veloso. Crepúsculo de arame. Montes Claros: Orobó edições, 2014.
A poesia lancinante de um crepúsculo de arame
por Márcio Adriano Moraes
www.marcioadrianomoraes.com
O caminho do tempo trota ligeiro pelos ponteiros de um relógio-memória. Dia, tarde e noite se refletem num mesmo espelho “par/tido”. O eu e o tu, par, que se anseia, mas que se esvai nas asas-palavras de pássaros. As feridas do tempo permanecem nos pensamentos frágeis como insetos na pequenez do mundo. Assim é o vislumbre do horizonte poético de Wagner Rocha, em seu Crepúsculo de arame, assinalado pela hora derradeira, riscando o horizonte da tênue luz crepuscular.
A filosofia mesclada à poesia em linguagem moderna. Versos que convidam a refletir na existência a partir da presença certeza do finito. A palavra ruflada das penas nas mãos do poeta pensante. Não há espaço para versos piegas, muito menos para versos que apaziguem o leitor. É uma poesia de arame, e de arame farpado, visceral.
A máquina da vida é um organismo que caminha rumo ao crepúsculo. No trajeto, as cercas que nos limitam são repletas de farpas que nos ferem. As cicatrizes servem para jamais esquecer instantes vividos, como auscultar a cidade pobre, onde cães e mendigos se sujeitam na noite operária. E os operários, na “figuração da manhã”, são mutilados logo às nove da manhã, a fome nos mercados.
O diálogo com o outro, ser amado ou enigmático, tangencia a poesia num bater de asas. Os pássaros são a metáfora desse movimento em que tudo se dissolve. E ficamos em “tebaida”, enquanto tudo se vai com o “vento-tempo”. A “similitude” está no homem, pássaro pensante; e no menino, fome de alma. Enquanto este se incrusta na matéria imaginada e experimenta, a vida outra de outro mundo; aquele se entrega a matéria pensada e alça voos que os distancia de si. Então, vem a “dissolução” do “tempo cego”, a cega saga de felicidade, rompida pelo homem-animal, o “homanimal” que não consegue se livrar das feridas do mundo, já que as cicatrizes permanecem na memória. Instância permanente até chegar a “hora aguda” e “esquecer o que em nós se acaba”.
O homem é só, em seu caminhar interior, numa busca intensa de seu ser no retrato antigo no tempo fora de si, um corpo à distância. E, quando chegada a aurora, o homem ante o abismo, coração sem prumo, ossos partidos, à espera de um rumo. O homem dependente da palavra, mesmo diante de um “silê/ncio ferido”. São os “assombros” que nos circulam: pensamentos feridos, o silêncio e os entes partidos. Porém, ao abrir dos olhos, a cada manhã, o homem vê “paisagens possíveis”, nas quais se pode auscultar a poesia de Deus. E como um inseto faminto por luz, buscamos do outro lado “o olhar das coisas em nós”.
O poeta revela a sua “árida escritura”: “escrevo o que o pensamento converte em poeira”. Para que não caia em estado de pó dissipado, a memória arde em resgate dos velhos desenhos, pois a realidade são os “pés calejados de chão” e os “ossos famintos de aurora”. Os dias diluem as horas, e as paisagens ficam cada vez mais distantes. E, quando assustarmos, não haverá nenhuma voz ferindo os caminhos, apenas uma paisagem silente.
Aqui não há força de permanência. O poeta, sabendo disso, confessa ao transcendente: “estou aqui, Senhor, a percorrer estes caminhos cegos”, porque “viver é desenhar caminhos”. No fim, o que restam destas “imagens sopradas” é silêncio, esquecimento, palavras, ossos, sonhos, solo da infância. Na “invenção da tarde”, a palavra seiva de uma árvore escorre pelo caminho aberto aos nossos pés, na sombra do pátio, nessa morte do dia para permanecer na memória. “Apodrece o tempo dentro/ dos relógios: as coisas não têm idade”.
Na “pós-história”, tudo o que sonhamos se torna aurora, nada resta de nós. A dúvida do que temos neste mundo de estúpidas miragens, entregamo-nos aos dias e seus tormentos, à espera de ouvir o nosso nome chamado pela aurora. Atravessar o mundo, colhendo as flores de um abismo iluminado.
Em Crepúsculo de arame, o filósofo Wagner Rocha encontra sua poesia no mundo. O poeta existe e sua “existência pressupõe/ esta agônica esperança”, a de que há, após traçar o caminho humano, numa ânsia de pássaros, ferido no tempo, chegar ao instante crepuscular, carregando consigo uma vida perpetuada na memória deixada para ti.
p.s.: em Crepúsculo de arame, o autor ainda traz alguns poemas escolhidos do seu primeiro livro Lápis lapso, de 1998.
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